Uma vergonha chamada Alexandre
Uma ordem política pode sobreviver a erros. Dificilmente sobrevive à perda do senso de medida
Há um elemento que atravessa todo o episódio envolvendo Alexandre de Moraes e o Banco Central do Brasil e que, curiosamente, foi pouco explorado para além do factual: a ausência de vergonha.
Não a vergonha psicológica, íntima, mas aquela vergonha pública e moral que, desde a Antiguidade, funcionava como último freio quando a lei ainda não fora formalmente violada... ou quando, mesmo violada, demoraria a reagir.
Os gregos tinham uma palavra precisa para isso: vergonha (aidōs).
Em Aristóteles, a aidōs não é ainda uma virtude plena, mas um sentimento formativo, pedagógico: ela indica que o indivíduo reconhece um limite antes de ultrapassá-lo.
Onde há vergonha, há consciência de medida; onde ela desaparece, instala-se o excesso soberbo, desmedida, arrogância (hybris).
Não por acaso, as tragédias começam quando alguém deixa de corar. O nosso problema contemporâneo é mais simples e mais grave: ninguém mais cora. Na mais alta corte do país, nem se fala.
As reportagens relatam que um ministro da Suprema Corte manteve contatos diretos com o presidente do Banco Central para tratar de assuntos sensíveis relacionados a interesses privados específicos.
O ponto decisivo não é antecipar juízos penais, mas observar a forma do gesto. Nada foi feito com constrangimento.
Não houve recuo preventivo, silêncio prudente, afastamento voluntário.
Houve explicações posteriores (das mais esfarrapadas, que ignoram a inteligência alheia), notas técnicas, normalização do comportamento.
Como se não houvesse sequer a percepção de que algo ali exigiria pudor institucional.
Como se a própria ideia de limite fosse exótica.
Aqui se revela a marca da hybris: não o erro clandestino, mas o erro tranquilo.
O abuso que não se esconde porque não se reconhece como abuso.
Um juiz que conversa informalmente com um regulador sobre temas que não lhe competem; um Estado que passa a funcionar por telefonemas e não por ritos (bem, o mesmo juiz sentencia por rede social!); uma autoridade que não se pergunta se deveria estar ali.
O mais sintomático é que tudo isso ocorre sem vergonha (aidōs); e, portanto, sem consciência de excesso (hybris).
O liberalismo clássico sempre soube que instituições não se sustentam apenas por normas escritas. Sustentam-se por hábitos morais, por autocontenção.
Hayek advertia que o Estado de direito depende tanto de regras gerais quanto de uma cultura de limites.
Quando agentes públicos deixam de sentir vergonha ao atravessar fronteiras institucionais, a lei passa a ser o mínimo a ser evitado, e não o guia.
O poder deixa de perguntar “devo?” para perguntar apenas “posso?”.
E quando esse deslocamento se consolida, a liberdade já começou a ser corroída, mesmo que nenhum artigo legal tenha sido ainda formalmente violado.
A ausência de vergonha é especialmente corrosiva porque antecipa a impunidade.
Antes mesmo de qualquer investigação, o gesto comunica: não reconheço limites que não estejam explicitamente sancionados.
É a ética do “se não é proibido segundo critérios que eu mesmo reconheça, subjetivamente, é permitido” aplicada ao poder coercitivo do Estado.
Rothbard denunciava precisamente esse ponto: o agente público que age como se o cargo lhe concedesse licença moral especial já não distingue autoridade de privilégio.
Ele não governa segundo regras; ele se move segundo conveniências.
O episódio do Banco Central revela, assim, menos um escândalo isolado e mais um traço civilizacional: a transformação da falta de pudor em normalidade administrativa.
O que antes exigiria explicação prévia hoje recebe apenas justificativa posterior.
Onde antes haveria silêncio embaraçado, agora há notas frias. A vergonha foi substituída pela assessoria; o limite, pela narrativa.
No fundo, o que inquieta não é apenas o que foi feito, mas a serenidade com que foi feito.
Uma ordem política pode sobreviver a erros. Dificilmente sobrevive à perda do senso de medida.
Quando autoridades já não sentem vergonha de agir fora do seu papel, a desmedida deixa de ser exceção e passa a ser método.
E então, como sabiam os gregos e repetiram os liberais, a queda não vem com estrondo: vem com naturalidade.
Pobre Brasil.
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Comentários (1)
Sandra Carvalho
2025-12-24 15:08:52Infelizmente, é a pura verdade. O descaramento desses "ungidos" é assustador. Será ainda possível reverter esse processo?...